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26 de julho de 2015

1978 Novembro




15 homens num cubico de 4x3










abre-se a porta da cela e entra um indivíduo de rosto implacável. olhos negros e pequenos reluzem um olhar distante e gélido e quase se perdem dentro das olheiras profundas. a boca é uma linha formada por dois lábios que se comprimem, como quem tenta suportar uma dor dilacerante. usa barba rala que não consegue disfarçar uma cicatriz semicircular que lhe atravessa a face esquerda na diagonal, do malar ao queixo. tem os ombros ligeiramente descaídos e braços desmesuradamente longos. o tronco presume-se franzino sob o camuflado. traz uma pistola à cintura onde repousa a mão direita à guisa de cobói do faroeste. falta-lhe o mindinho direito e a falangeta do anelar da mesma mão.

acompanha-me! assim, sem mais nem menos e traga as suas coisas.
as minhas coisas? nada tenho de meu, aqui, só se for o colchão e a almofada, mas até isso é vosso!
vai lhe ser distribuído outro colchão, não se preocupa.
estou às suas ordens, como não podia deixar de ser.

saímos. à minha frente segue o da cicatriz e um soldado da guarda à minha retaguarda. passamos ao quintal.

vinte e três dias depois penso poder, finalmente, sentir no rosto uma brisa refrescante, mas engano-me. o ar está abafado. Levanto o olhar para o céu em direcção à serra do Uije. ao longe ainda, um poalho de cacimbo ameaça invadir a cidade, lá para o final da tarde.

no quintal há três cubicos armados em celas. um deles tinha sido, outra hora, a garagem da moradia-prisão. um anexo para arrumos, o do meio. o terceiro já fora garagem da moradia vizinha: derrubaram o muro divisório e construíram um outro de forma a transpor a garagem para o lado de cá.

as portas das celas são de ferro com uma minúscula lucerna onde não cabe a cabeça de um candengue.

encaminham-me para os antigos arrumos. o guarda corre o ferrolho e abre a pesada porta que range nos gonzos. do interior explode um bafo empestado de suor e mais. o da cicatriz empurra-me para dentro da cela e tropeço em algo mas consigo manter o equilíbrio. a porta fecha-se com estrondo nas minhas costas. não há luz. aguardo que os olhos se adaptem à escuridão. segundos depois começo a distinguir vultos humanos, sentados no chão. a cela, literalmente, está empanturrada de homens.

boa tarde, camaradas, consigo apenas balbuciar após o choque que a cena me provoca.
boa tarde, camarada! responde um coro de vozes, anormalmente forte dada a situação em que se encontram.

um dos vultos levanta-se, dirige-se a mim e estende-me a mão. à sua aproximação já consigo distinguir os traços do rosto largo coberto por uma barba hirsuta, o cabelo curto com entradas pronunciadas, o olhar vivo e o riso matreiro. sorrio. é um amigo do Negage que conheci quando, andarilho de quimbo em quimbo, mobilizava os agricultores pobres das lavras para que se organizassem em cooperativas. o meu amigo não me reconhece porque estou de costas para a escassa luz que se filtra pela lucerna.

bem-vindo ao Palácio de Kiboiongo. escusa de perder tempo a contar. com você fazemos dezasseis. meu nome…
... é Justino Kiangalala, completo a frase.

a cara sorridente de Justino tinge-se de espanto quando eu rodo o corpo para que a luz me incida no rosto de perfil,

camarada Lindo!

abraçamo-nos longamente, comovidos.

eu bem que devia desconfiar. um branco com um cabelo comprido desse só podia ser o Lindo. Mas nem me passou pela cabeça que eras tu. tu… aqui dentro?
por que não? se tu estás no Palácio, por que não eu? não sejas egoísta!
não! se me contassem eu não acreditava, condeus! O camarada Lindo! o mundo está doido.
vamos ter muito tempo para conversar sobre isso. agora diz-me, como se consegue sobreviver neste cubico?

quinze homens, agora dezasseis, num cubico de quatro por três metros e não mais de dois de altura. a cobertura é uma placa de cimento armado sem telhas. na parede que avizinha o pátio há uma pequena abertura, à laia de espiráculo, à altura das canelas de um homem, com três finas tiras imitando grosseiras persianas. são de betão as persianas para que não haja a tentação de as arrancar.

a casa de banho, ao fundo da parede esquerda, é um apenso à cela em espaço roubado ao exterior. há apenas uma sanita e uma torneira que sai da parede a quatro palmos do chão. para tomar banho os reclusos mais baixos ajoelham-se e os mais altos sentam-se no chão sob a torneira. a tampa da sanita está fechada sobre várias folhas de jornal, para impedir que o olor tuji-ni-masu perfume o ambiente, pois nem sempre há água para a descarga.

já ambientado à escuridão, distingo, quase na perfeição, os rostos dos meus novos companheiros. Kiangalala faz as apresentações um a um e põe-se a contar estórias das andanças que ambos vivemos. desde a altura em que nos perdemos na mata, que Justino conhecia como as palmas das mãos. o problema foi que, não sendo das suas palmas nem das suas mãos, penámos até sermos encontrados por dois camponeses que regressavam das palmeiras do maluvo. e ainda bem! aquele néctar fresquinho soube como bênção do céu, se é que lá também se pode consumir bebida de pecado. cadavez tenha estatuto semelhante ao vinho do Porto, que só não é bebida de pecado para os padres. até ao dia em que chegámos a um quimbo e encontrámos a aldeia em pé de guerra.

a população mantinha um sekulo atado a um pau de café e acusava-o de contra-revolucionário. contrariamente ao que se possa pensar não queriam fazer justiça por suas próprias mãos, já se vai saber porquê. exigiam, isso sim, a presença dos responsáveis do partido que logo indagaram mas como, então? e os populares, muito ciosos da sua verdade, atropelavam-se na ânsia de contar todas as versões dos factos, cada uma a mais verídica. o velho era feiticeiro, à noite transformava-se em gafanhoto e fazia-se transportar num avião miniatura.

é pruquê ele é feiticeiro, mas é dos feitiço que faz mal no povo.
que mal? o que faz ele?
no de-noite ele anda virar gafanhoto, dá entrada nas cubata e faz tudo qu’ele quer na gente e inté rouba nossa comida.
alguém já presenciou o velho a fazer essas coisas?
haka! como que a gente vai ver? é feitiço, camarada!
então, se não viram, como é que estão a acusá-lo?
é pruquê é feitiço mesmo.
e não faltam os casos de violação,
às vez caté faz coisa co’as mulher.
casadas ou solteiras?
é casado, mesmo. tem uma que lhe fizeram... Mariaaaa... fala no camarada.
a camarada foi violada?
se foi é quê?
o velho fez alguma coisa com você, na cama?
é, sim.
e você não reagiu... não pediu a ajuda de outras pessoas?
como que pode, camarada? a gente não se sente nada. feitiço é assim, a gente parece tá hólua, nem que se pode mexer.
e o seu homem?
então, ele está dormir, também não está saber nada.
bem, vamos ver se a gente se entende: vocês não conseguem ver nada, não ouvem nada, não sentem nada, mas sabem o que ele faz!
é, sim, camarada!
ao menos, alguém viu o avião?
Madalena! Madalena está onde?... Madalena vai embora trazer o avião.

o avião é entregue ao do partido.
isto é apenas um brinquedo de criança.
mas avoa mesmo, camarada.
você já viu o brinquedo voar?
eu nunca que vi mas o todo povo está saber ele avoa mesmo.
interrogado, o velho afirma que comprou o brinquedo no Negaje para oferecer ao neto que vive com a mãe no Kimbele.

dikutu, atalha Madalena, avião é feitiço mesmo.                
mas, ao menos, expliquem: porque é que vocês têm tanta certeza de uma coisa que nunca viram?
é pruquê o quimbanda diz.

o caso deslinda-se, finalmente. após uma breve conversa com o quimbanda os responsáveis do partido chegam a uma conclusão óbvia: há, naquele povo, entre o velho e o quimbanda, um conflito de interesses. o acusado pretende ser o melhor quimbanda e este diz-se um óptimo feiticeiro. as duas práticas entrechocam-se frequentemente.

os responsáveis viram-se em palpos de aranha para resolver o caso a contento e o povo só descansou quando o velho foi levado para a cidade sob escolta militar. mais tarde seria enviado para junto da filha, no Kimbele.

na cela todos se riem do caso, mas eu sei que tem alguns deles admitem convictamente os poderes do velho.




cidade de Carmona, actual Uije


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