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26 de julho de 2015

1978 Novembro




15 homens num cubico de 4x3










abre-se a porta da cela e entra um indivíduo de rosto implacável. olhos negros e pequenos reluzem um olhar distante e gélido e quase se perdem dentro das olheiras profundas. a boca é uma linha formada por dois lábios que se comprimem, como quem tenta suportar uma dor dilacerante. usa barba rala que não consegue disfarçar uma cicatriz semicircular que lhe atravessa a face esquerda na diagonal, do malar ao queixo. tem os ombros ligeiramente descaídos e braços desmesuradamente longos. o tronco presume-se franzino sob o camuflado. traz uma pistola à cintura onde repousa a mão direita à guisa de cobói do faroeste. falta-lhe o mindinho direito e a falangeta do anelar da mesma mão.

acompanha-me! assim, sem mais nem menos e traga as suas coisas.
as minhas coisas? nada tenho de meu, aqui, só se for o colchão e a almofada, mas até isso é vosso!
vai lhe ser distribuído outro colchão, não se preocupa.
estou às suas ordens, como não podia deixar de ser.

saímos. à minha frente segue o da cicatriz e um soldado da guarda à minha retaguarda. passamos ao quintal.

vinte e três dias depois penso poder, finalmente, sentir no rosto uma brisa refrescante, mas engano-me. o ar está abafado. Levanto o olhar para o céu em direcção à serra do Uije. ao longe ainda, um poalho de cacimbo ameaça invadir a cidade, lá para o final da tarde.

no quintal há três cubicos armados em celas. um deles tinha sido, outra hora, a garagem da moradia-prisão. um anexo para arrumos, o do meio. o terceiro já fora garagem da moradia vizinha: derrubaram o muro divisório e construíram um outro de forma a transpor a garagem para o lado de cá.

as portas das celas são de ferro com uma minúscula lucerna onde não cabe a cabeça de um candengue.

encaminham-me para os antigos arrumos. o guarda corre o ferrolho e abre a pesada porta que range nos gonzos. do interior explode um bafo empestado de suor e mais. o da cicatriz empurra-me para dentro da cela e tropeço em algo mas consigo manter o equilíbrio. a porta fecha-se com estrondo nas minhas costas. não há luz. aguardo que os olhos se adaptem à escuridão. segundos depois começo a distinguir vultos humanos, sentados no chão. a cela, literalmente, está empanturrada de homens.

boa tarde, camaradas, consigo apenas balbuciar após o choque que a cena me provoca.
boa tarde, camarada! responde um coro de vozes, anormalmente forte dada a situação em que se encontram.

um dos vultos levanta-se, dirige-se a mim e estende-me a mão. à sua aproximação já consigo distinguir os traços do rosto largo coberto por uma barba hirsuta, o cabelo curto com entradas pronunciadas, o olhar vivo e o riso matreiro. sorrio. é um amigo do Negage que conheci quando, andarilho de quimbo em quimbo, mobilizava os agricultores pobres das lavras para que se organizassem em cooperativas. o meu amigo não me reconhece porque estou de costas para a escassa luz que se filtra pela lucerna.

bem-vindo ao Palácio de Kiboiongo. escusa de perder tempo a contar. com você fazemos dezasseis. meu nome…
... é Justino Kiangalala, completo a frase.

a cara sorridente de Justino tinge-se de espanto quando eu rodo o corpo para que a luz me incida no rosto de perfil,

camarada Lindo!

abraçamo-nos longamente, comovidos.

eu bem que devia desconfiar. um branco com um cabelo comprido desse só podia ser o Lindo. Mas nem me passou pela cabeça que eras tu. tu… aqui dentro?
por que não? se tu estás no Palácio, por que não eu? não sejas egoísta!
não! se me contassem eu não acreditava, condeus! O camarada Lindo! o mundo está doido.
vamos ter muito tempo para conversar sobre isso. agora diz-me, como se consegue sobreviver neste cubico?

quinze homens, agora dezasseis, num cubico de quatro por três metros e não mais de dois de altura. a cobertura é uma placa de cimento armado sem telhas. na parede que avizinha o pátio há uma pequena abertura, à laia de espiráculo, à altura das canelas de um homem, com três finas tiras imitando grosseiras persianas. são de betão as persianas para que não haja a tentação de as arrancar.

a casa de banho, ao fundo da parede esquerda, é um apenso à cela em espaço roubado ao exterior. há apenas uma sanita e uma torneira que sai da parede a quatro palmos do chão. para tomar banho os reclusos mais baixos ajoelham-se e os mais altos sentam-se no chão sob a torneira. a tampa da sanita está fechada sobre várias folhas de jornal, para impedir que o olor tuji-ni-masu perfume o ambiente, pois nem sempre há água para a descarga.

já ambientado à escuridão, distingo, quase na perfeição, os rostos dos meus novos companheiros. Kiangalala faz as apresentações um a um e põe-se a contar estórias das andanças que ambos vivemos. desde a altura em que nos perdemos na mata, que Justino conhecia como as palmas das mãos. o problema foi que, não sendo das suas palmas nem das suas mãos, penámos até sermos encontrados por dois camponeses que regressavam das palmeiras do maluvo. e ainda bem! aquele néctar fresquinho soube como bênção do céu, se é que lá também se pode consumir bebida de pecado. cadavez tenha estatuto semelhante ao vinho do Porto, que só não é bebida de pecado para os padres. até ao dia em que chegámos a um quimbo e encontrámos a aldeia em pé de guerra.

a população mantinha um sekulo atado a um pau de café e acusava-o de contra-revolucionário. contrariamente ao que se possa pensar não queriam fazer justiça por suas próprias mãos, já se vai saber porquê. exigiam, isso sim, a presença dos responsáveis do partido que logo indagaram mas como, então? e os populares, muito ciosos da sua verdade, atropelavam-se na ânsia de contar todas as versões dos factos, cada uma a mais verídica. o velho era feiticeiro, à noite transformava-se em gafanhoto e fazia-se transportar num avião miniatura.

é pruquê ele é feiticeiro, mas é dos feitiço que faz mal no povo.
que mal? o que faz ele?
no de-noite ele anda virar gafanhoto, dá entrada nas cubata e faz tudo qu’ele quer na gente e inté rouba nossa comida.
alguém já presenciou o velho a fazer essas coisas?
haka! como que a gente vai ver? é feitiço, camarada!
então, se não viram, como é que estão a acusá-lo?
é pruquê é feitiço mesmo.
e não faltam os casos de violação,
às vez caté faz coisa co’as mulher.
casadas ou solteiras?
é casado, mesmo. tem uma que lhe fizeram... Mariaaaa... fala no camarada.
a camarada foi violada?
se foi é quê?
o velho fez alguma coisa com você, na cama?
é, sim.
e você não reagiu... não pediu a ajuda de outras pessoas?
como que pode, camarada? a gente não se sente nada. feitiço é assim, a gente parece tá hólua, nem que se pode mexer.
e o seu homem?
então, ele está dormir, também não está saber nada.
bem, vamos ver se a gente se entende: vocês não conseguem ver nada, não ouvem nada, não sentem nada, mas sabem o que ele faz!
é, sim, camarada!
ao menos, alguém viu o avião?
Madalena! Madalena está onde?... Madalena vai embora trazer o avião.

o avião é entregue ao do partido.
isto é apenas um brinquedo de criança.
mas avoa mesmo, camarada.
você já viu o brinquedo voar?
eu nunca que vi mas o todo povo está saber ele avoa mesmo.
interrogado, o velho afirma que comprou o brinquedo no Negaje para oferecer ao neto que vive com a mãe no Kimbele.

dikutu, atalha Madalena, avião é feitiço mesmo.                
mas, ao menos, expliquem: porque é que vocês têm tanta certeza de uma coisa que nunca viram?
é pruquê o quimbanda diz.

o caso deslinda-se, finalmente. após uma breve conversa com o quimbanda os responsáveis do partido chegam a uma conclusão óbvia: há, naquele povo, entre o velho e o quimbanda, um conflito de interesses. o acusado pretende ser o melhor quimbanda e este diz-se um óptimo feiticeiro. as duas práticas entrechocam-se frequentemente.

os responsáveis viram-se em palpos de aranha para resolver o caso a contento e o povo só descansou quando o velho foi levado para a cidade sob escolta militar. mais tarde seria enviado para junto da filha, no Kimbele.

na cela todos se riem do caso, mas eu sei que tem alguns deles admitem convictamente os poderes do velho.




cidade de Carmona, actual Uije


10 de julho de 2015

1967.a palmatória

mijar no adro


há sempre uma mancha negra uma ovelha ranhosa nos bons rebanhos nas boas famílias nas boas escolas.

no Colégio tinha duas, zuze marika e runano mulende (na língua de caputu). os dois empregavam o mesmo adjectivo para xingar os Alunos, selvagens. a ambos os Alunos desconsideram professores por estarem mais talhados para capangas de Hitler, por eles os alunos tinham fastio da escola. ambos tinham o mesmo gosto por Mulecas, para o mulende qualquer um sítio dá por isso não dispensa o cambriquito sempre presente na bagageira do carro, já o marika actua pela calada da noite no recato e conforto do quarto.

runano mulende era um homenzinho com uma ligeira cacunda que mais se pronunciava pelo andar caído para diante aos solavancos, perdera o sorriso à nascença e trazia a palmatória enraizada na caixa-de-óculos com olhos pequenos sempre baixos e mais manhosos que os da Hiena-malhada, sem desprimor para o bicho que esse os usa assim para sobreviver.

zuze marika por incrível que pareça era padre e tudo lhe servia para bater, o seu maior prazer tirando as Mulecas, até das carteiras o manhoso arrancava tábuas para transformar em palmatórias. e tinha um tique estranho, passava a língua incessantemente pelo lábio inferior, nunca foi possível descobrir a origem dessa mania mas as más-línguas mujimbavam a hipótese de o hábito estar relacionado com as ditas Mulecas. para ele nada disto constituía problema moral ou existencial,

era daqueles para quem pecado é mijar no adro.

mulende entrava de rompante na sala com aquele andar de gangester mal-amanhado que nem físico para isso tinha, não cumprimentava os Alunos que assim era a educação verdadeira, marimbava-se para a chamada quem não estivesse que se lixasse e começava a aula sem mais, sumário: chamada oral.

já o marika era mais sofisticado, entrava sorrindo riso de satanás, segurava as abas da batina para parecer que tinha o passo decidido, também não cumprimentava os Alunos mas mirava-os de frente provocador como quem: queriam que os cumprimentasse suas alimárias? ao sumário nem ligava para quê estas bestas não merecem que lhes dê satisfações sobre o que há de acontecer durante a aula.

mulende tinha um método pedagógico descomum: os exercícios escritos eram invariavelmente fora do tempo da aula e prolongavam-se por hora e meia duas horas, os enunciados eram de vinte e seis folhas mais meia dúzia de esquemas e gravuras, os pontos valiam entre vinte e seis e trinta e dois valores mas o magano aplicava a equação matemática precisa para que doze valores fosse nota negativa.

não devia nada à esperteza muito menos à inteligência, certa vez o Niel à rasca com a matéria de zoologia pediu-me  ponto escrito para copiar e não se sabe o que passou pela cabeça daquele marado, chamou o mulende senhor professor deixei cair um borrão de tinta no ponto porque a caneta tem o bico torto e arranha posso passá-lo a limpo? o mulende experimentou a caneta é claro que o aparo tinha a inclinação da escrita do Aluno e ele que sim por acaso a caneta estava mesmo romba, não raciocinou que a mesma caneta já escreveu bem quando o Niel começou a copiar o exercício nem sequer viu o nome do Aluno dono do ponto no cabeçalho da folha, quem que se lixou fui eu que me vi obrigado a refazer o ponto todinho.

é claro que a folha com o borrão foi parar ao jornal de parede, uma galhofa geral ele nem soube que não ligava pívia às actividades dos Alunos, se algum dia soube foi como o corno manso.

marika tinha a mania de esperto, esperteza saloia o que era. um dia marcou tpc trabalho para casa, tinha também a mania que fora ele o inventor da sigla tpc, com o célebre problema dos galgos, era uma corrida deles e o necessário era calcular a velocidade de cada um. ei estorriquei os neurónios revirei equações de cima para baixo da frente para trás mas o resultado dava sempre o mesmo, desigual das soluções. no dia seguinte antes do início da aula os Alunos compararam os exercícios e verificaram que os mais barras a matemática tinham o mesmo resultado, conclusão a solução estava errada.

o marika adiantou corrigir os exercícios, todos errados suas bestas seus burros seus selvagens seus incompetentes seus inaptos outra vez seus burros seus selvagens e muitos mais seus estes e aqueles, nem se importou que alguns dos Alunos tivessem o mesmo resultado as soluções é que mandavam.

ufano bangoso cheio de jactância dirigiu-se ao quadro, apagador na mão esquerda giz na direita, aprendam seus selvagens, começou a desenvolver as equações mas os galgos lhe pregaram partida da grossa, o seu resultado era igualinho ao dos Alunos barras a matemática.

marika olhou para o quadro, espiou as soluções, o rosto afogou-se de vermelho que nem jindungo e os Alunos riram no coração a cara de banzado. pousou apagador e giz, pegou nos livros e desandou da sala sem nada dizer nem teve o cuidado de agarrar as abas da batina ia tropeçando sorte do colégio que não caiu senão sujava o chão todo com imundície dos pensamentos.

durante vários dias não teve a hombridade de enfrentar os Alunos nem deu aulas, melhor para eles sem ter que o aturar.

naquele dia mulende gangester mal-amanhado entrou na sala como de costume, não cumprimentou os Alunos, marimbou-se para a chamada e começou a aula sem mais sumário: chamada oral.

chamou o primeiro Aluno perguntou e ele nada mudo e quedo, chamou o segundo e ele nada quedo e mudo, não sabia o mentecapto que a combina era geral, ninguém fala todos mudos e logo se vê das consequências, uma coisa é certa enquanto o gajo não nos tratar como pessoas ninguém abre a boca nem escreve o que quer que seja, chamou o terceiro Aluno e ele nada mudo e mudo. mulende foi aos arames levantou-se da secretária, o que é que vem a ser isto seus selvagens, seus cabeludos, seus hipis, suas bestas,

ia continuar com os seus, alto lá você não volta a insultar senão vai ter que se haver comigo, ao fundo da sala era o João o mais velho da turma. mulende armado em valente avançou em direcção ao Aluno, o João saltou da carteira e plantou-se à frente do pequeno ditador, mulende surpreso chocou no peito firme do Aluno e franzino foi cuspido com o embate, aos tropeções nos pés dele mesmo quase caiu, reflectiu que dali não levaria nada, voltou à secretária agarrou nos livros e ao sair ainda rosnou todos para a rua, mas foi ele quem saiu com o rabo entre as pernas.

foi apresentar queixa no director e este confirmou a sentença e ainda corroborou, vão todos expulsos e só voltam com a presença dos pais.

assembleia-geral de Alunos ninguém chama os pais ninguém diz nada como se nada tivesse acontecido, depois logo se vê quem ganha.

comissão formada para apresentar contraproposta ao director, só voltamos às aulas se o mulende for expulso do Colégio.

passaram-se vários dias, os Alunos não entravam no Colégio passavam umas horas sentados no passeio em frente, outras horas no café Flamingo entretidos com o jogo das palavras, cada um acrescenta uma letra quem completar palavra perde o jogo, depois vem a discussão essa palavra não existe amanhã vou te mostrar no dicionário, só se for dicionário de Kimbundo.

os pais não apareciam, o director e os demais professores reconheceram provavelmente que aqueles Alunos eram descendentes dos homens e mulheres sem medo que tinham vencido e domado o Deserto e não havia nada a fazer.

havia-havia: dispensar o mulende. e assim aconteceu, o putativo professor foi mesmo expulso. tiveram muito senso os responsáveis por esta decisão uma vez que não transformaram o assunto em caso político de contrário os Alunos teriam parado na prisão, parece que o mulende ainda tentou mas lembrou-se que tinha os casos das Mulecas e desistiu.

ainda não disse vou dizer agora que tudo isto aconteceu no anteriormente da Revolução dos Cravos.

nenhum membro do rebanho guardou saudades daqueles pastores.

1961-1966.a palmatória

por uma quissanga



Porém o sonho dura pouco. Quando retornamos a Angola comprovo que não vou ter a bici.

O pai arranjou novo patrão e quando vejo a pescaria ainda tenho ilusões ao encarar a casa grande. Mentira, não é ali que vamos morar.

A casa que nos está destinada é na sanzala. É uma correnteza de casas baixas, simples quartos construídos de enfiada, cada um com quatro paredes, um chão e um tecto, uma porta e uma janela.

Os contratados amontoam-se às dezenas em cada quarto, onde não há mais que simples catres feitos de aduelas de barril e tocos de madeira, algumas velas ou lamparinas montadas em velhas latas de azeite, para se poderem enxergar uns aos outros.

Há uma cozinha com fogão-a-lenha de cimento e um telheiro aberto que serve de refeitório, sem mesas nem cadeiras, ora essa! onde se recreiam e sunguilam durante o escasso tempo de folga. Nas traseiras da sanzala um cubículo de quatro paredes e um chuveiro, onde à noite se pode apreciar a beleza do firmamento, chama-se casa de banho e completa o complexo habitacional. Não há sanitários. As necessidades fisiológicas são descarregadas no areal ou no mar.

À minha família, eu, o mano Mingos, o pai e a mãe (mano Adriano irá nascer mais tarde), o patrão condescende os dois primeiros quartos da sanzala onde foi rasgada uma porta de comunicação. Um é o quarto de dormir dos pais, o outro serve de sala de jantar e nosso quarto. No exterior o meu pai constrói um anexo de tábuas e folhas de zinco com duas divisões, uma para cozinha e outra para sanitário e casa de banho. Um chuveiro improvisado em lata de cinco litros de azeite puro de oliva serve para o banho e uma bacia esmaltada para a higiene corriqueira de mãos e rosto. A sentina é um latão ontem-de-óleo e tem que ser despejado no mar, o cano de esgoto por excelência.

Não é um palácio mas a Dona Maria traz aquilo num brinco, fala o patrão essas palavras de ensebar, como se faz nas baleeiras e outros barcos, penso eu no meu interior radical, como alguém dirá um dia.

Em frente à sanzala uma eira forrada a mateba e cercada de bordões substituiu as velhas tarimbas que já ali moraram. Serve para a seca de peixe graúdo, como a corvina. Quando está vaga é o nosso campo de futebol, um excelente campo de treinos porque só nós conseguimos equilibrar-nos e correr sobre as deslizantes folhas de mateba. Junto da casa grande há um belo areal onde não se pode brincar porque parece mal.

Na casa grande vivem a Avó Maria e a Tia Beatriz. Tem quintal onde crescem mamoeiros, figueiras e romãzeiras. E anexos para guardar fuba, feijão, azeite-palma e macanha para os contratados. No quintal da lenha há um pombal que fornece os ingredientes para as canjas medicinais.

Aquelas velhinhas são avó e tia porque muitas crianças – que são tantos os netos e sobrinhos – lhes chamam assim. Como eu não tenho, aqui, nem avó nem tias, também costumei de chamar-lhes a minha avó e a minha tia. Sobreviventes dos primeiros poveiros que aqui arribaram, os que não esperaram pela volta do desejado, trazem no rosto as garroas que suportaram e no ser a sabedoria acumulada. E isso querem transmiti-lo à candengada. É uma alegria quando se juntam no quintal da casa grande. Dentro de casa, porém, é um silêncio abarrotado de respeito quando elas falam aquelas coisas da doutrina e da vida, que repisam para que as crianças se façam grandes. Há quem não entenda ser aquela a educação adequada mas elas contrapõem simplesmente como serviu para os meus filhos, que se fizeram homens, servirá para os meus netos.

Não gostam nada que eu e o Mingos andemos no meio dos contratados, muito menos que comamos do seu pirão, que nós adoramos. Coisa de quem nunca provou pirão com azeite-palma. Chateiam a mãe que nos deve prender em casa para evitar desleixos na educação. Só se os amarrar a uma tunga! aflige-se a mãe, mas não deixa de nos açoitar por essas tropelias. Desadiantou.

Impedidos de brincar com os filhos dos quimbares à vista de toda a gente, mal podemos esgueiramo-nos para a praia ou para o areal junto às dunas. E o areal é o céu. Brancos, pretos e mulatos, à vezes algum albino, damos asas às nossas traquinices e aos trumunos de bola. E aí se vê que as reviengas não dependem da cor da pele.

Depois vamos para uma casa para lá do areal, casa de verdade mesmo junto às dunas e às casuarinas. Tão junto que basta saltar o muro do quintal para atingir o paraíso. Mirando as casas de olhos nos olhos, salta à vista que têm a testa arredondada como os periquitos. A alcunha pega de estaca: gaiola de periquitos.

As duas coisas que eu mais gosto na casa nova de gaiola de periquitos é o tomate: ele todo e a cor. A cor é tão diferente dos vermelhos todos que eu não tenho outra palavra para lhe chamar senão vermelho-tomate. Dizem que ali é um deserto mas isso pouco importa. Basta que a mãe despeje no quintal as águas de preparar os alimentos para os tomateiros nascerem e crescerem viçosos. Colher o tomate, tomar-lhe o peso recheado, passar os dedos pela pele sedosa, molhá-lo em água corrente e trincá-lo como se fosse uma laranja, mastigá-lo e sentir a frescura do suco escorrer pelo queixo é o divino sabor da vida.

Anos mais tarde, quando aquela avó e aquela tia partem para a paz eterna, a nossa família muda-se para a casa grande. Porque alguém tem que tomar conta da casa, regar as árvores de fruto, alguém tem que guardar as rações e ter a canseira de as fornecer ao cozinheiro dos contratados. Vistas bem as coisas, assim o meu pai já nem precisa de aumento de ordenado. Intrigo eu, radical.

Aqui há outro sabor de que não abdico: uma buganvília em caramanchão onde esgoto as horas, refastelado numa cadeira de aduelas com um livro na mão e um rádio de pilhas ao lado. Leio tudo o que me chega às mãos. Alguém fez, até, nascer rumores de que, por ler tão demasiado, eu posso vir a ter problemas de saúde. Do foro psiquiátrico, é bom de ver.

Os anos passaram e PortAlexandre já tem duas escolas primárias, depois de nascer a Frederico Welwitsch ao sul, mas o Colégio Cónego Zagalo é o único estabelecimento de ensino secundário. O Putu é muito lento em dotar Angola de estruturas essenciais, talvez por estar a muitas léguas marítimas de distância. As populações sempre sentiram que tinham que ser elas a resolver o que ao governo compete. O colégio é dirigido por padres católicos, lecciona até ao quinto ano liceal mas não pertence à rede do ensino oficial. Os alunos são obrigados a prestar provas no liceu de Moçamedes, a capital do distrito, para que os seus conhecimentos sejam tidos como válidos.

Depois só é possível continuar os estudos em algumas das grandes cidades. Nem toda a gente pode manter os filhos a estudar porque o saber é um luxo. Uns não podem e a outros não deixam. E, além do mais, as pessoas têm que aprender que todos só nascem iguais na nudez, mas uns devem ser ricos e outros pobres, que por isso é que existe o reino dos céus. Para lá vão os pobres quando morrerem já que é mais fácil um rico passar pelo cu de uma agulha do que entrar naquele reino. Entretanto, cá em baixo, os ricos não necessitam nem do cu da agulha nem do reino dos céus, chega-lhes viver na abastança.

No colégio é um primeiro dia de aulas, uma primeira aula e a apresentação do novo professor de físico-química. Adianta cantar a chamada: 1, 2, 3, 4... e 27. Não há aluno 27. Silêncio. O professor enfrenta a turma e aguarda resposta. É parvo! Então faz a chamada de cor sem saber quantos alunos tem? Eu dou-lhe a resposta, espontânea e científica:

O número 27 está no infinito, isto é, não existe aluno.

O professor não acha graça piada. Errou. Como mestre daquela disciplina deveria conhecer as leis das lentes e espelhos. Será mesmo professor, ou deveria dedicar-se à pesca? Mas é professor mesmo, será um bom mestre e amigo dos alunos mas isso ainda ninguém sabe, porque ninguém nasce ensinado nem aprendido. Para isso ali estão, professores e alunos, mas nem todos chegam a essa conclusão com a mesma facilidade. Será um bom mestre, é certo, mas deverá ser ele, sempre, a ter o protagonismo, nas aulas ou fora delas.

Rua!

Saio da aula não sem antes resmungar:

Falta de sentido de humor… científico.

O professor ouviu mas convém-lhe fazer ouvidos de mercador!
Vou sentar-se no muro que separa o colégio da capitania marítima. Passa por ali o sacristão que estranha a sua presença:

Não foi na aula?

Fui, mas já saí porque já sei tudo e aquilo é uma chatice.

Você está mentir, vou te queixar no sô padre.

Podes queixar ao São Pedro se quiseres.

O sacristão segue o seu caminho, desconfiado, sacrista de merda!

Libertei-me.

Já não pareço a criança que sangrou na Maria da Cruz Rolão. A pouco e pouco o autismo abandonou-me. Hoje sou um dos mais galhofeiros e irreverentes do colégio. Voltei ao antigamente de criança. Por paradoxal que pareça são professores os responsáveis pela mudança. O Padre Jaime que adora brincar e jogar vólei com os alunos. Nunca se ouviu este homem levantar a voz. Se está zangado nota-se no rosto apenas a falta do sorriso, sempre disfarçado mas de pai. Dona Tina que me ensinou o gosto pelas palavras. Com as suas lições comecei aprender a manobrá-las. Dona Maria da Conceição, aquela senhora dos olhos de água que é mãe da Dona Tina, foi quem leu pela primeira vez em público, numa aula, o meu versejar juvenil. Não esqueço o seu conselho: nunca deixes de passar para o papel o que te vai na alma. E a aiLeda, uma professora diferente. Dentro da aula é aquilo que eu nunca tive mas que adoraria: uma irmã mais velha que serve de mestra. Nela resplandece sempre o carinho da irmã e a exigência da professora, nas doses correctas. Por alguns eu continuaria na mesma mas, com estes, comecei a esquecer os medos passados. Entanto, não definitivamente: ainda hoje, de quando em vez, sobra uma sombra de raiva. Aprendi à minha custa que, nas coisas da consciência ou da alma, como se queira, nem todos os homens são iguais. Isto, sim, é que deve ter que ver com a estória do reino dos céus.

Estou de costas voltadas para a capitania quando escuto uma voz angustiada, subserviente de medo:

Discurpa, sô chefe, jura condeus, eu não roubou não.

Roubou, sim, não roubou quê, seu turra da merda!

O alarido vem do quarto que nós, os alunos do colégio, sabemos ser o das palmatoadas, onde os sipaios desancam os contratados que são queixados pelos patrões. Quando a palmatória é insuficiente entra em acção o cavalo-marinho.

É só pra comer, sô chefe.

É pra comer e não serve peixe de carapau? Precisa roubar uma quissanga? Quissanga é sua?

É sim, sô chefe, eu que lhe pescou.

Cada frase, cada resposta ou queixume são acompanhados de violentas e sonoras palmatoadas.

Você pescou o peixe mas é na baleeira, seu cabrão.

Haka, sô chefe! geme o desgraçado, verdade mesmo, lhe pesquei c’onzolo no ponte. Jura, sô chefe!

É a mesma coisa. Como que você compraste o anzolo? Também roubou no patrão, não é? E se lhe pescaste no ponte, o ponte também é do patrão.

Já contei setenta e cinco palmatoadas.

Outra mão!

Do contratado já se ouvem apenas gemidos. Às cento e cinquenta a palmatória descansa.
      
Desço do muro e volto-me para a capitania. Abre-se a porta e o sipaio enxota o contratado com um pontapé na parte externa da coxa esquerda. O homem geme de dor e sai a coxear. Tem as mãos inchadas como cepos e sangra das unhas.

Toca a sineta para o intervalo das aulas mas eu continuo no mesmo sítio, revoltado. Olho para o sipaio que sorri com olhos de alarve.

À porta da capitania o patrão aguarda pelo contratado. Dá-lhe ordem para subir para a caixa do camião. Sem palavras, apenas com um cobarde pontapé que lhe desfere nas canelas.



8 de julho de 2015

1959-1961 – a palmatória

castanha pilada



Quando chegámos à Póvoa, uma das primeiras coisas que a minha mãe fez foi levar-nos a uma sapataria, na Junqueira. Comprou-nos, a mim e ao Mingos, cada nosso par de botas de borracha, porque era Janeiro e a chuva não parava. Para nós foi uma novidade tão grande que, ainda não estavam pagas e já nós chapinhávamos na rua, mesmo a chover. Pois se as botas eram para a chuva…

O primeiro sabor novo que provo é o da castanha pilada.

A castanha, descascada e pelada, é amarela e seca, cheia de rugas como o rosto das velhinhas pobres. É dura ao primeiro toque dos dentes. Necessita de ser trincada e salivada com abundância para se sentir o sabor adocicado com um ligeiro travo nos cantos da boca.

Meu avô de mãe compra-me um tostão delas, quando me leva, pela primeira vez, à escola do Bota-p’á-mula. Tanto eu gosto deste sabor, que meu avô recomenda veementemente ao meu tio Zé, que continuará a levar-me à escola enquanto eu não decorar o caminho, que não falte de me comprar o tostão de castanhas.

Aquela escola não tem meninas. Só rapazes, coisa a que não estou acostumado, aqui há escolas para rapazes e escolas para raparigas, em separado, esclarecem-me. E também não tem nenhum menino preto. Passa a ter agora, quando os novos colegas me dão alcunha: o preto, por vir de Angola, pela fala diferente e pela tez queimada pelo sol do Namibe. 

A palmatória é igualinha a todas as outras. Aqui chamam bolos às palmatoadas, cadavez para fazer crer que a palmatória é qualquer coisa de necessário e essencial. Os nutricionistas actuais dizem que não, que os bolos até podem ser prejudiciais à saúde física. E mental, digo eu. O professor que me cabe em sorte, um Castelo Branco, é um boleiro de primeira. Requintado e científico no bater e no inventar bater. Mas não é mau de todo quando pousa a palmatória. Deslindou as aulas no exterior. Fica por saber se para nosso bem, se para seu próprio prazer. Em todo o caso é nessas alturas que ele nos traz mais soltos e felizes.

Uma das vezes leva a aula para a praia, junto ao velódromo, ou belódromo como aqui se diz. Descobri que são duas letras matreiras, o v e o b. Nunca estão à hora certa no local exacto. Revezam-se, sem escala definida, na tarefa de compor as palavras com que a gente se entende ou desentende. O professor decide acabar a aula mais cedo, diz ele para que nós os putos fiquemos a brincar um pouco mais na praia. Dá para desconfiar de tanta delicadeza, mas aceitamos. Mas ai daquele que não chegue a horas no período da tarde. Só que nós não temos relógio e da areia para o banho de mar vai um pulo até à língua da maré.

Quando chego em casa, antes de almoçar a correr, a minha mãe dá-me o aperitivo: quatro bofetadas. Nunca faz por menos. A sobremesa vai ser saboreada na escola que fica num primeiro andar perto dos correios, com acesso por uma escada de madeira que aparece mal se franqueia a porta de entrada. Chego sorrateiro, espreito de esguelha pela porta. Os receios concretizam-se. A escada está carregada de meninos alinhados de alto-a-baixo. Aguardam, cabisbaixos e silenciosos, o que os espera. O professor está no cimo da escada de braços cruzados e palmatória na mão. Visto de baixo é o retrato exacto do Adamastor do livro de História.



aquela que foi, na década de 1960,
 a Escola primária do "Bota p’à Mula",
na Rua Tenente Valadim, Póvoa de Varzim
                                                      

Deixa de espiar e põe-te na fila até que cheguem os que faltam.

Mal se completa a turma começa a dança. O professor manda-nos entrar, um a um, a palmatória dá-nos as boas-vindas e começa a estralejar. Dez palmatoadas e a repetição de uma lengalenga que marca o compasso:

Para a próxima – vou cumprir – o que o professor – me mandar – e não fico – na brincadeira – na praia – como os rapazes – vadios e – mal-educados.

À medida que a escada se esvazia a sala enche-se de queixumes e ais. Todos gemem porque aqui não se pratica a técnica da caca de galinha. Todos menos um, o Marcolino que dispensou aos bolos.

Olho para as palmas das mãos inchadas, desconhecidas as linhas que se diz ser as do destino. Parecem mesmo castanhas piladas depois de salivadas, mas da cor-de-rosa.

O professor dirige-se para a secretária, pousa a palmatória e começa a aula, já o tempo vai adiante mas pouco importa porque a sessão de bolos é fundamental para o ensino.

Vão fazer uma redacção sobre a aula de hoje e acrescenta com um indisfarçável sorriso sádico, sem ocultar nenhum pormenor.

Como sempre, vai para o corredor conversar com o palmatoeiro da outra escola e, certamente, vangloriar-se do feito e trocar experiências.

A outra escola fica do lado oposto, costa com costa e entrada por uma rua paralela. Têm em comum a casa de banho e o corredor. Na prática dir-se-ia apenas uma escola com duas turmas.

O chefe de turma fica obrigado a apontar no quadro, como é hábito, os nomes dos malcomportados mas todos sabem que o caso pode dar para o torto. O chefe de turma, geralmente o mais velho se não for rufia, é um mártir. Quando o professor regressa e não há nomes no quadro, o coitado do rapaz apanha, invariavelmente, meia dúzia de bolos porque é impossível que vocês estejam calados tanto tempo.

Da outra vez, para variar, lê no quadro apenas uma palavra: todos. É um desafio ao mestre que o vence sem esforço: um festival de bolaria. O chefe de turma leva a dobrar, as dele e as do Marcolino, filho de pessoas de bem e amigos pessoais do professor, porque não acredito que o Marcolino tenha feito barulho, é um menino (os restantes são rapazes) muito bem-educado. No entanto, digo eu, a verdade é que o Marcolino é dos mais barulhentos e macacos. Cadavez é daqueles que têm a tinta de escrever no sangue, cicio eu para as minhas mãos inchadas.

É este professor que me diz, certo dia, que o meu pai é um colono. Acho a palavra muito feia, palavra de maca  que parece até xingamento.  Adianta o sô-pressor que os portugueses que abalam para África, como colonos, vão explorar os pretos e regressam ricos. Mas há algo que adivinho não bater certo. Tiro teimas com o meu avô,

Ó vô, o meu pai é colono?
Porque perguntas isso?
Foi o sô-pressor que disse.

O velho lobo-do-mar senta-me nos joelhos e mira-me com aqueles olhos de sábio – mais do que catedrático embora apenas com a 4ª classe, ainda assim um grande feito para a classe social a que pertence – que tão bem ele sabe fazer. Que sim, que o meu pai e muitos outros portugueses vão para África, para as várias colónias portuguesas, uns de livre vontade, outros forçados, uns à aventura, outros com os pais sem saber porquê, como era o meu caso. Uns por isto, outros por aquilo. Mas vão todos para colonizar, como apregoa Salazar – D. Salazar é o senhor que está encaixilhado nas paredes das escolas, desta e da Maria da Cruz Rolão. Decorei na lição. Dizem que manda em tudo e todos, quer se queira, quer se não, conclui o meu avô.

Então tu também foste colono no Brasil e n’Angola!

Olha, meu menino, adoro quando o avô me chamava assim, colono ou não-colono, o que eu fui foi à procura de vida, que aqui sempre houve mais miséra que pão. Nunca deu p’ra mais do que uma côdea de broa. Não vim rico, como diz o teu professor, embora tenha forrado alguns tostões que ia mandando para a família. Mas tudo à custa destes braços que aqui vês, que se esfalfaram a trabalhar. Se fui colono, que seja, mas nunca bebi uma pinga de suor de quem quer que fosse, branco ou preto. É verdade que os há assim, gananciosos e exploradores, isso há, mas não são tratados como colonos. Muitos deles nunca puseram os pés em África, mas de lá é que lhes vem a riqueza, vê tu bem como é feita essa história.

E o meu pai vai ficar rico?

Não, meu menino, quem vive do seu trabalho nunca chega a rico. Os pretos muito menos. Dizem-nos, quando embarcamos para África, que não são gente e piores do que bichos do mato, mas isso é fala de quem nunca lá esteve ou de quem se quer aproveitar da fraqueza alheia.

Confio piamente no meu avô mas gostaria que o pai ficasse rico. Pelo menos um niquinho só para comprar a bicicleta do meu sonho. Uma para mim e outra para o Mingos… mas também podia ser uma para os dois!

Porém o sonho dura pouco. Quando retornamos a Angola comprovo que não vou ter a bici.









1957-1959.a palmatória


Construíram guerra
nos olhos do menino
[...]
lição mandada decorar
de olhos secos


Maria Teresa Horta, Lição










canivete e a professora maluquinha


Era única, a Escola Primária Maria da Cruz Rolão, em PortAlexandre.

Única pela casa assombrada. É uma casa anexa à escola que deveria ser ocupada pela directora. Dizemos que ela se recusa a lá viver porque tem uma alma do outro mundo que mora nela.

Nas brincadeiras de recreio os candengues  nem se atrevem aproximar-se com medo terror da alma. Mesmo durante o jogo d’escondidas aquele coito é tabu. Mas nem sempre, é verdade. Há sempre os que criam fama de valentões e se acoitam mesmo no caramanchão crescido ao deus-dará na varanda exterior. Até isso é sinal da existência da alma do outro mundo. Mas não lhes adianta porque basta que outros putos adivinhem e soltem um uh!uh! para se apreciar a valentia borrar-se pernas abaixo, berrida  medrosa a sete pés.




Única porque, durante décadas, não houve outra na vila. Foi ali que gerações de pais e filhos aprenderam a soletrar os rios, os afluentes e os subafluentes, a calcorrear com os dedos deslizantes, mapa cima mapa abaixo, as serras, as montanhas, os outeiros com cabeço e sem cabeço, a percorrer a poucaterra-poucaterra das linhas, estações e apeadeiros dos caminhos-de-ferro de Portugal. Pelo que se via, em Angola nada disso existia: não havia rios, nem montes, vales ou quaisquer belezas ou recursos naturais. O Pungo-Andongo, o Cuanza e a Chela eram invencionices dos nacionalistas. Não havia o Cabo Negro porque o padrão – deste e dos outros cabos dos trabalhos – fora colocado, por Digo Cão, directamente na Sociedade de Geografia de Lisboa. Estou em crer que não podia ser de outra forma para sublimar a metrópolis.

Em Angola não havia o caminho-de-ferro de Moçamedes, nem o de Benguela, o de Malanje também não, tampouco o de nenhures. A Chela, com 2.000m de altitude, não era a serra mais alta de “Portugal”. Pois não, porque mandaram construir uma torre, na Serra da Estrela, até o monte atingir os 2.000m, para que Angola não tivesse essa primazia.

Que tacanhez mais primária!

Aprendia-se ali, também ou principalmente, as formas mais eficazes de suportar as palmatoadas. A verdadeira mestra era a palmatória. Se um a se reclinasse, mangonheiro, para a esquerda, palmatoada. Se a tabuada não fosse cantada na escala devida - em dó maior - palmatoada. Se alguém falasse durante a aula, palmatoada. Se não falasse, palmatoada na mesma. Podia alguém não saber que o Cuanza  nasce no Mumbué que isso não tem a menor importância já que ninguém nos ensina e, logo-logo, também ninguém nos pergunta. Mas se acaso o rio Tejo nascesse na Capadócia aí sim, era palmatoada de três em pipa.

A palmatória era o prolongamento pedagógico dos conhecimentos do professor. Se alguém visse um professor sem palmatória na mão era mau sinal: ou estava com paludismo, ou tinha o pulso aberto.

Eu sempre fui um branco de extremos – tive dos melhores mas, também, dos piores professores. Aí adiante vem já um exemplar do segundo tipo.

Tem apenas duas crianças pretas que frequentam na escola, coisa que eu não entendo, havendo tantas outras em idade escolar. E havendo o Canivete. Dizem que só vão na escola os filhos dos brancos e dos similados. E similado é quê? Eu não sei, os outros meninos também. Eu só sei que há muitos Canivetes. Similados, pelos vistos, há só dois.

Canivete é um Mukuankala que todos dias, durante a primeira classe, me acompanha na escola, no ir e no vir. Adoro as estórias que ele me conta. Aprecio sobremaneira as suas explicações sobre as palavras e termos da sua língua-mãe, cantaroladas e abundantes de estalinhos da língua que se entremeiam nas estórias. Acho, até, que foi ele o primeiro responsável pela minha apetência pela Cultura Angolana.

Nem sinto a longa caminhada. A escola fica quase no princípio da vila e eu moro no extremo oposto, onde não há estrada nem de terra-batida, bem para lá da barreira de casuarinas, na pescaria do Venâncio Pobre.

Naquele dia sexta-feira paro, já perto de chegar em casa, sento-me no areal e puxo Canivete pela mão para que faça o mesmo, Queres ver, Canivete, eu já sei ler!?

Abro o livro de leitura da 1ª classe. Canivete parece mais feliz, mais criança do que eu, a criança verdadeira. Aprecia os desenhos bonitos e a arquitectura das letras.





I, g-r-e gre, j-a ja, igreja. Vês como sei! Lê agora tu, aponto para o desenho de uma árvore - não é casuarina mas é uma árvore ainda assim - e para as letras correspondentes.

Eu não sabe ler, minino, diz-me Canivete com os olhos tristes que falam mais do que a boca.

Olho para ele com boca de banzamento. Aberta. Mantenho o olhar, que entristeceu, fixo no meu amigo e tento passar para lá da angústia vidrada nos seus olhos, Preto não vai na escola, tão diferentes daqueles que me cantam estórias bonitas.

Guardo o livro, dou a mão ao Canivete e seguimos a caminho de casa, cada um mais triste do que o outro. Tem muitas coisas que me custa perceber. Mas agora já entendo aquela capa esquiva que Canivete veste nos olhos sempre que chegamos na escola.

Tem apenas duas crianças pretas que frequentam na escola como eu disse. Uma delas é Maria filha do regedor, a outra é Mauro, filho emprestado de um caga-livros parece é mulato. O filho é preto. A professora bem se esfalfa na correcção, diz-se guarda-livros, meninos, mas como não há graça alguma em tal palavrão, o pai do Mauro continuará caga-livros, ad aeternum.

Mauro é o rei das palmatoadas. Para ele podem ser dez, podem ser cem,  que dá no mesmo. Todos dias, antes de ir na escola, visita na capoeira e besunta as mãos com caca de galinha. Assim a palmatória só resvala no sebo e não se sente a dor, esclarece. Por isso não se preocupa muito com os rios, onde nasce o Guadiana? na serra de Lisboa! o quê, sua besta? na serra do Gargomil, não, na serra de Sintra, não, não... na serra das Tábuas! e zás, lá vai palmatoada. Parece não ser nada com ele. Enquanto aguenta o castigo finge que dói, não vá a professora desvendar a sua estratégia. É que a caca de galinha resulta mesmo!

Saber ou não saber, para a professora vai dar ao mesmo. Eu conto:




A sala da aula da 3ª classe está tão cheia de silêncio que apenas se percebe o bje-bje da sô-pressora a contar as malhas do pano de renda.

Os candengues desenham e contam nos cadernos, com folha de linhas e folha lisa entremeadas, a estória completa do velho e do burro. Que há professores assim: quando não estão com pachorra toca a mandar os alunos praticar nas belas-artes. E nós, sozinhos, inventamo-nos grandes escritores e pintores exímios.



Subitamente, vindo das filas de trás, alguém faz vibrar a lâmina de barbear de dois gumes que entalei na frincha do tampo da carteira, as lâminas servem para afiar os lápis, não para melodiar brincadeiras, já se fartara de avisar a professora.

O tuim-tuim da lâmina rasga o silêncio de tal forma que a professora, enrendilhada nos lavores, deixa cair a sua obra-prima e leva as mãos ao peito, bocaberta de sufoco.

Menino Admário, já para o quadro!

A ordem mais temida. Levanto-me sem pressa nenhuma, dirijo-me para junto do quadro negro, negro o quadro e negro o medo, mas argumento:

Não fui eu, sô-pressora!

Então quem foi?

Não sei, não lhe vi.

Não o vi, seu burro, pareces um preto a falar!

Eu sei quem foi sô-psôra, foi o Belmiro, Glória toda orgulhosa, sempre queixinhas.

O resultado é aquele que mais agrada à professora: leva o Belmiro pela presumível autoria, a Glória porque sabe quem foi mas, já agora, não se fica a rir e eu porque não sei mas sou o proprietário da lâmina. O Belmiro chora ranho e a Glória, essa então, desfaz-se em baba. Até aí tudo bem para a professora, porque a glória maior da sua pedagogia e o seu supremo prazer é o choro das crianças.

Quando chega a minha vez, porém, a coisa muda intempestivamente. Mesmo sem caca de galinha nas mãos, aguento estoicamente a meia dúzia de palmatoadas. Sem um gemido. Eu sou assim, sempre fui porque é a minha índole, quando tenho razão não há quem me vergue. Levo mais meia dúzia por não chorar. Continuo sem chorar. A xipala da sô-pressora começa virar furta-cores, na ausência de ais ou lágrimas minhas. Fica vermelha, muda para azul, passa o verde e acaba amarelada.

De repente uma raiva bruta chispa-lhe dos olhos. Pousa a palmatória na secretária e continua com a mão fechada para não se doer. Dizem que também a eles dói. Eu sei que em mim dói mesmo, a valer. Mas em quem dá, dói aonde? Bate uma, duas, três, quatro vezes na cara, na boca, no nariz, onde calha e no sítio que está mais à mão. Literalmente. A minha alva bata, o orgulho de minha mãe, que não admite um risquinho de tinta na alvura do tecido, salpica-se de borrões vermelhos. Do sangue. Sim, que há também quem o tenha azul como a tinta de escrever. O meu é vermelho. O nariz, finalmente, pinga como a professora gosta, mas de sangue.

Preocupo-me mais com os ralhos da mãe pelo estado da bata, do que com o sangue.

Olho para a professora, triste e dorido como só uma criança consegue sentir. Limpo aos punhos da bata o sangue que me escorre do nariz. A professora, mais branca do que a cal da parede (mais uma vez mudou de cor), agarra-se à secretária, não sei porquê!

Abandono o estrado e dirijo-me para a carteira, sempre a sangrar e deixando um rasto de sangue pelo caminho. Glória chora cada vez mais baba. Os restantes alunos estão petrificados de medo. Meto os livros, lápis e cadernos dentro da pasta com o cuidado devido para não os borrar de sangue, sem esquecer a lâmina e abandono a sala. A professora não me deu ordem para sair mas, depois do que aconteceu, estou decidido a que ninguém me trave o passo. Não sei porquê, sinto-me um pequeno gigante.

Já fora da escola paro, pouso a pasta no chão, inclino a cabeça para trás, comprimo o nariz tentando estancar o sangue. Quando sinto que o fluxo diminui, continuo a caminhada para casa.

Junto ao Grémio da Pesca encontro o meu pai. Nunca, até então, vi o cota tão lívido. Conto-lhe o sucedido. O tio Adriano, que passa de motorizada, também se inteira do meu estado e ficam ambos fora de si, quase esgazeados.

Cunhado, leve o miúdo ao hospital que eu vou à escola.

Tenha calma, veja lá o que vai fazer!

Quando lá chegar logo se vê.

No dia seguinte fico a saber o que passou. Como me contam os colegas, o meu pai quis saber da professora que, ou tinha fugido da escola ou estava escondida. Como não aparecesse e depois de pontapear duas carteiras, disse tantas ou tão poucas à directora que a senhora não sabia onde se meter, sem argumentação possível.

O meu pai quer resolver o problema. É um simples pescador poveiro, analfabeto nas letras, rude no trato mas respeitador e mestre no trabalho. Pai a todas as horas, do dia e da noite. Requerimentos ou queixas formais não se vão sobrepor ao intrincado enredo de interesses, amizades e filiações sociais. É o que ele pensa. Eu ando, por ora, longe destas macas, mas lá chegarei e, entretanto, sofro as consequências. Por fim, acalmado pelos outros professores,  virou-se para a directora:

O meu filho, amanhã, vem às aulas. Mas não quero que essa mulher lhe apareça à frente. Resolva o assunto como quiser mas se a criança me diz que viu uma ponta do cabelo dessa bandida, eu próprio lhe ensino com quantas tábuas se constrói uma baleeira.

Terá sido assim que as coisas se passaram com meu pai, ou apenas o exagero inventivo das crianças, vitória sobre o medo que sentiram durante a cena macabra?

A minha mãe, mais cordata, foi aconselhar-se com Dona Maria da Conceição Coelho. A boa senhora estava revoltada. Era também professora embora não fosse, na altura, a directora da escola. Explicou-lhe pacientemente todos os passos que deveriam ser encetados.

O certo é que a professora energúmena, fiquei a saber que é da família dos Matarrões, que agora até os colegas tratam por esquizofrénica, coisa que nós miúdos ficamos a saber tratar-se de um xingamento de médico, é transferida e, mais tarde, mandada mudar de serviço - foi para enfermeira. 

Coitados dos doentes!

Mesmo assim, a partir daquele dia deixei de ser o menino alegre de ontem. Fechei-me. Ganhei medo a tudo e todos. Na escola, mesmo sabendo, tinha receio de responder aos professores. No trato com eles era hermético. Evitava olhá-los de frente, não fossem descobrir o ódio que me ia na alma. Os meus medos transpiravam para fora da escola e acompanhavam-me para todo o lado. Chegava, por vezes, ao limiar do autismo.

E não se pense que a pedagogia da mestra palmatória fica por aqui.

Por causa disto ou porque algo se passa entre os caluandas  e os contratados, assunto que os mais-velhos tratam em surdina sem se aperceberem que também as crianças têm olhos e ouvidos, o pai resolve mandar-me para a metrópole, com a mãe e o mano Mingos.

Vou ficar a saber que a metrópole fica em Portugal.

Como Cabo-Verde, Guiné, São-Tomé-e-Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Damão, Diu, Macau e Timor são os ultramares. Só custa entender porquê que Açores e Madeira não estavam na lista. E Cabinda também não.

No Putu, como todos os candengues chamamos Portugal, a palmatória vai ser mais quente e cantadeira.

Seja como for, no Putu vou repetir a terceira classe porque, depois do caso do sangue, reprovei o ano.