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8 de julho de 2015

1959-1961 – a palmatória

castanha pilada



Quando chegámos à Póvoa, uma das primeiras coisas que a minha mãe fez foi levar-nos a uma sapataria, na Junqueira. Comprou-nos, a mim e ao Mingos, cada nosso par de botas de borracha, porque era Janeiro e a chuva não parava. Para nós foi uma novidade tão grande que, ainda não estavam pagas e já nós chapinhávamos na rua, mesmo a chover. Pois se as botas eram para a chuva…

O primeiro sabor novo que provo é o da castanha pilada.

A castanha, descascada e pelada, é amarela e seca, cheia de rugas como o rosto das velhinhas pobres. É dura ao primeiro toque dos dentes. Necessita de ser trincada e salivada com abundância para se sentir o sabor adocicado com um ligeiro travo nos cantos da boca.

Meu avô de mãe compra-me um tostão delas, quando me leva, pela primeira vez, à escola do Bota-p’á-mula. Tanto eu gosto deste sabor, que meu avô recomenda veementemente ao meu tio Zé, que continuará a levar-me à escola enquanto eu não decorar o caminho, que não falte de me comprar o tostão de castanhas.

Aquela escola não tem meninas. Só rapazes, coisa a que não estou acostumado, aqui há escolas para rapazes e escolas para raparigas, em separado, esclarecem-me. E também não tem nenhum menino preto. Passa a ter agora, quando os novos colegas me dão alcunha: o preto, por vir de Angola, pela fala diferente e pela tez queimada pelo sol do Namibe. 

A palmatória é igualinha a todas as outras. Aqui chamam bolos às palmatoadas, cadavez para fazer crer que a palmatória é qualquer coisa de necessário e essencial. Os nutricionistas actuais dizem que não, que os bolos até podem ser prejudiciais à saúde física. E mental, digo eu. O professor que me cabe em sorte, um Castelo Branco, é um boleiro de primeira. Requintado e científico no bater e no inventar bater. Mas não é mau de todo quando pousa a palmatória. Deslindou as aulas no exterior. Fica por saber se para nosso bem, se para seu próprio prazer. Em todo o caso é nessas alturas que ele nos traz mais soltos e felizes.

Uma das vezes leva a aula para a praia, junto ao velódromo, ou belódromo como aqui se diz. Descobri que são duas letras matreiras, o v e o b. Nunca estão à hora certa no local exacto. Revezam-se, sem escala definida, na tarefa de compor as palavras com que a gente se entende ou desentende. O professor decide acabar a aula mais cedo, diz ele para que nós os putos fiquemos a brincar um pouco mais na praia. Dá para desconfiar de tanta delicadeza, mas aceitamos. Mas ai daquele que não chegue a horas no período da tarde. Só que nós não temos relógio e da areia para o banho de mar vai um pulo até à língua da maré.

Quando chego em casa, antes de almoçar a correr, a minha mãe dá-me o aperitivo: quatro bofetadas. Nunca faz por menos. A sobremesa vai ser saboreada na escola que fica num primeiro andar perto dos correios, com acesso por uma escada de madeira que aparece mal se franqueia a porta de entrada. Chego sorrateiro, espreito de esguelha pela porta. Os receios concretizam-se. A escada está carregada de meninos alinhados de alto-a-baixo. Aguardam, cabisbaixos e silenciosos, o que os espera. O professor está no cimo da escada de braços cruzados e palmatória na mão. Visto de baixo é o retrato exacto do Adamastor do livro de História.



aquela que foi, na década de 1960,
 a Escola primária do "Bota p’à Mula",
na Rua Tenente Valadim, Póvoa de Varzim
                                                      

Deixa de espiar e põe-te na fila até que cheguem os que faltam.

Mal se completa a turma começa a dança. O professor manda-nos entrar, um a um, a palmatória dá-nos as boas-vindas e começa a estralejar. Dez palmatoadas e a repetição de uma lengalenga que marca o compasso:

Para a próxima – vou cumprir – o que o professor – me mandar – e não fico – na brincadeira – na praia – como os rapazes – vadios e – mal-educados.

À medida que a escada se esvazia a sala enche-se de queixumes e ais. Todos gemem porque aqui não se pratica a técnica da caca de galinha. Todos menos um, o Marcolino que dispensou aos bolos.

Olho para as palmas das mãos inchadas, desconhecidas as linhas que se diz ser as do destino. Parecem mesmo castanhas piladas depois de salivadas, mas da cor-de-rosa.

O professor dirige-se para a secretária, pousa a palmatória e começa a aula, já o tempo vai adiante mas pouco importa porque a sessão de bolos é fundamental para o ensino.

Vão fazer uma redacção sobre a aula de hoje e acrescenta com um indisfarçável sorriso sádico, sem ocultar nenhum pormenor.

Como sempre, vai para o corredor conversar com o palmatoeiro da outra escola e, certamente, vangloriar-se do feito e trocar experiências.

A outra escola fica do lado oposto, costa com costa e entrada por uma rua paralela. Têm em comum a casa de banho e o corredor. Na prática dir-se-ia apenas uma escola com duas turmas.

O chefe de turma fica obrigado a apontar no quadro, como é hábito, os nomes dos malcomportados mas todos sabem que o caso pode dar para o torto. O chefe de turma, geralmente o mais velho se não for rufia, é um mártir. Quando o professor regressa e não há nomes no quadro, o coitado do rapaz apanha, invariavelmente, meia dúzia de bolos porque é impossível que vocês estejam calados tanto tempo.

Da outra vez, para variar, lê no quadro apenas uma palavra: todos. É um desafio ao mestre que o vence sem esforço: um festival de bolaria. O chefe de turma leva a dobrar, as dele e as do Marcolino, filho de pessoas de bem e amigos pessoais do professor, porque não acredito que o Marcolino tenha feito barulho, é um menino (os restantes são rapazes) muito bem-educado. No entanto, digo eu, a verdade é que o Marcolino é dos mais barulhentos e macacos. Cadavez é daqueles que têm a tinta de escrever no sangue, cicio eu para as minhas mãos inchadas.

É este professor que me diz, certo dia, que o meu pai é um colono. Acho a palavra muito feia, palavra de maca  que parece até xingamento.  Adianta o sô-pressor que os portugueses que abalam para África, como colonos, vão explorar os pretos e regressam ricos. Mas há algo que adivinho não bater certo. Tiro teimas com o meu avô,

Ó vô, o meu pai é colono?
Porque perguntas isso?
Foi o sô-pressor que disse.

O velho lobo-do-mar senta-me nos joelhos e mira-me com aqueles olhos de sábio – mais do que catedrático embora apenas com a 4ª classe, ainda assim um grande feito para a classe social a que pertence – que tão bem ele sabe fazer. Que sim, que o meu pai e muitos outros portugueses vão para África, para as várias colónias portuguesas, uns de livre vontade, outros forçados, uns à aventura, outros com os pais sem saber porquê, como era o meu caso. Uns por isto, outros por aquilo. Mas vão todos para colonizar, como apregoa Salazar – D. Salazar é o senhor que está encaixilhado nas paredes das escolas, desta e da Maria da Cruz Rolão. Decorei na lição. Dizem que manda em tudo e todos, quer se queira, quer se não, conclui o meu avô.

Então tu também foste colono no Brasil e n’Angola!

Olha, meu menino, adoro quando o avô me chamava assim, colono ou não-colono, o que eu fui foi à procura de vida, que aqui sempre houve mais miséra que pão. Nunca deu p’ra mais do que uma côdea de broa. Não vim rico, como diz o teu professor, embora tenha forrado alguns tostões que ia mandando para a família. Mas tudo à custa destes braços que aqui vês, que se esfalfaram a trabalhar. Se fui colono, que seja, mas nunca bebi uma pinga de suor de quem quer que fosse, branco ou preto. É verdade que os há assim, gananciosos e exploradores, isso há, mas não são tratados como colonos. Muitos deles nunca puseram os pés em África, mas de lá é que lhes vem a riqueza, vê tu bem como é feita essa história.

E o meu pai vai ficar rico?

Não, meu menino, quem vive do seu trabalho nunca chega a rico. Os pretos muito menos. Dizem-nos, quando embarcamos para África, que não são gente e piores do que bichos do mato, mas isso é fala de quem nunca lá esteve ou de quem se quer aproveitar da fraqueza alheia.

Confio piamente no meu avô mas gostaria que o pai ficasse rico. Pelo menos um niquinho só para comprar a bicicleta do meu sonho. Uma para mim e outra para o Mingos… mas também podia ser uma para os dois!

Porém o sonho dura pouco. Quando retornamos a Angola comprovo que não vou ter a bici.









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