castanha pilada
Quando
chegámos à Póvoa, uma das primeiras coisas que a minha mãe fez foi levar-nos a
uma sapataria, na Junqueira. Comprou-nos, a mim e ao Mingos, cada nosso par de botas
de borracha, porque era Janeiro e a chuva não parava. Para nós foi uma novidade
tão grande que, ainda não estavam pagas e já nós chapinhávamos na rua, mesmo a
chover. Pois se as botas eram para a chuva…
O primeiro
sabor novo que provo é o da castanha pilada.
A castanha,
descascada e pelada, é amarela e seca, cheia de rugas como o rosto das
velhinhas pobres. É dura ao primeiro toque dos dentes. Necessita de ser
trincada e salivada com abundância para se sentir o sabor adocicado com um ligeiro
travo nos cantos da boca.
Meu avô de mãe
compra-me um tostão delas, quando me leva, pela primeira vez, à escola do
Bota-p’á-mula. Tanto eu gosto deste sabor, que meu avô recomenda veementemente
ao meu tio Zé, que continuará a levar-me à escola enquanto eu não decorar o
caminho, que não falte de me comprar o tostão de castanhas.
Aquela escola
não tem meninas. Só rapazes, coisa a que não estou acostumado, aqui há escolas para rapazes e escolas para
raparigas, em separado, esclarecem-me. E também não tem nenhum menino
preto. Passa a ter agora, quando os novos colegas me dão alcunha: o preto, por
vir de Angola, pela fala diferente e pela tez queimada pelo sol do Namibe.
A palmatória é
igualinha a todas as outras. Aqui chamam bolos às palmatoadas, cadavez para
fazer crer que a palmatória é qualquer coisa de necessário e essencial. Os
nutricionistas actuais dizem que não, que os bolos até podem ser prejudiciais à
saúde física. E mental, digo eu. O professor que me cabe em sorte, um Castelo
Branco, é um boleiro de primeira. Requintado e científico no bater e no
inventar bater. Mas não é mau de todo quando pousa a palmatória. Deslindou as
aulas no exterior. Fica por saber se para nosso bem, se para seu próprio
prazer. Em todo o caso é nessas alturas que ele nos traz mais soltos e felizes.
Uma das vezes
leva a aula para a praia, junto ao velódromo, ou belódromo como aqui se diz.
Descobri que são duas letras matreiras, o v
e o b. Nunca estão à hora certa no
local exacto. Revezam-se, sem escala definida, na tarefa de compor as palavras
com que a gente se entende ou desentende. O professor decide acabar a aula mais
cedo, diz ele para que nós os putos fiquemos a brincar um pouco mais na praia. Dá
para desconfiar de tanta delicadeza, mas aceitamos. Mas ai daquele que não chegue a horas no período da tarde. Só que nós
não temos relógio e da areia para o banho de mar vai um pulo até à língua da
maré.
Quando chego
em casa, antes de almoçar a correr, a minha mãe dá-me o aperitivo: quatro
bofetadas. Nunca faz por menos. A sobremesa vai ser saboreada na escola que
fica num primeiro andar perto dos correios, com acesso por uma escada de
madeira que aparece mal se franqueia a porta de entrada. Chego sorrateiro,
espreito de esguelha pela porta. Os receios concretizam-se. A escada está
carregada de meninos alinhados de alto-a-baixo. Aguardam, cabisbaixos e
silenciosos, o que os espera. O professor está no cimo da escada de braços
cruzados e palmatória na mão. Visto de baixo é o retrato exacto do Adamastor do
livro de História.
aquela que foi, na década de 1960,
a Escola primária do "Bota p’à Mula",
a Escola primária do "Bota p’à Mula",
na Rua Tenente Valadim, Póvoa de Varzim
Deixa de
espiar e põe-te na fila até que cheguem os que faltam.
Mal se
completa a turma começa a dança. O professor manda-nos entrar, um a um, a
palmatória dá-nos as boas-vindas e começa a estralejar. Dez palmatoadas e a
repetição de uma lengalenga que marca o compasso:
Para a próxima – vou cumprir – o que o
professor – me mandar – e não fico – na brincadeira – na praia – como os
rapazes – vadios e – mal-educados.
À medida que a
escada se esvazia a sala enche-se de queixumes e ais. Todos gemem porque aqui
não se pratica a técnica da caca de galinha. Todos menos um, o Marcolino que
dispensou aos bolos.
Olho para as
palmas das mãos inchadas, desconhecidas as linhas que se diz ser as do destino.
Parecem mesmo castanhas piladas depois de salivadas, mas da cor-de-rosa.
O professor
dirige-se para a secretária, pousa a palmatória e começa a aula, já o tempo vai
adiante mas pouco importa porque a sessão de bolos é fundamental para o ensino.
Vão fazer uma redacção sobre a aula de hoje
e acrescenta com um
indisfarçável sorriso sádico, sem ocultar
nenhum pormenor.
Como sempre,
vai para o corredor conversar com o palmatoeiro da outra escola e, certamente,
vangloriar-se do feito e trocar experiências.
A outra escola
fica do lado oposto, costa com costa e entrada por uma rua paralela. Têm em
comum a casa de banho e o corredor. Na prática dir-se-ia apenas uma escola com
duas turmas.
O chefe de
turma fica obrigado a apontar no quadro, como é hábito, os nomes dos
malcomportados mas todos sabem que o caso pode dar para o torto. O chefe de
turma, geralmente o mais velho se não for rufia, é um mártir. Quando o
professor regressa e não há nomes no quadro, o coitado do rapaz apanha,
invariavelmente, meia dúzia de bolos porque é
impossível que vocês estejam calados tanto tempo.
Da outra vez,
para variar, lê no quadro apenas uma palavra: todos. É um desafio ao mestre que
o vence sem esforço: um festival de bolaria. O chefe de turma leva a dobrar, as
dele e as do Marcolino, filho de pessoas de bem e amigos pessoais do professor,
porque não acredito que o Marcolino tenha
feito barulho, é um menino (os restantes são rapazes) muito bem-educado. No entanto, digo eu, a verdade é que o Marcolino
é dos mais barulhentos e macacos. Cadavez é daqueles que têm a tinta de
escrever no sangue, cicio eu para as minhas mãos inchadas.
É este
professor que me diz, certo dia, que o meu pai é um colono. Acho a palavra
muito feia, palavra de maca que parece até xingamento. Adianta o sô-pressor que os portugueses que abalam para África, como
colonos, vão explorar os pretos e regressam ricos. Mas há algo que adivinho não
bater certo. Tiro teimas com o meu avô,
Ó vô, o meu pai é colono?
Porque perguntas isso?
Foi o sô-pressor que disse.
O velho
lobo-do-mar senta-me nos joelhos e mira-me com aqueles olhos de sábio – mais do
que catedrático embora apenas com a 4ª classe, ainda assim um grande feito para
a classe social a que pertence – que tão bem ele sabe fazer. Que sim, que o meu
pai e muitos outros portugueses vão para África, para as várias colónias
portuguesas, uns de livre vontade, outros forçados, uns à aventura, outros com
os pais sem saber porquê, como era o meu caso. Uns por isto, outros por aquilo.
Mas vão todos para colonizar, como apregoa Salazar – D. Salazar é o senhor que
está encaixilhado nas paredes das escolas, desta e da Maria da Cruz Rolão.
Decorei na lição. Dizem que manda em tudo
e todos, quer se queira, quer se não, conclui o meu avô.
Então tu também foste colono no Brasil e n’Angola!
Olha, meu menino, adoro quando o avô me chamava assim, colono ou não-colono, o que eu fui foi à
procura de vida, que aqui sempre houve mais miséra que pão. Nunca deu p’ra mais
do que uma côdea de broa. Não vim rico, como diz o teu professor, embora tenha
forrado alguns tostões que ia mandando para a família. Mas tudo à custa destes
braços que aqui vês, que se esfalfaram a trabalhar. Se fui colono, que seja,
mas nunca bebi uma pinga de suor de quem quer que fosse, branco ou preto. É verdade que os há assim, gananciosos e
exploradores, isso há, mas não são tratados como colonos. Muitos deles nunca
puseram os pés em África, mas de lá é que lhes vem a riqueza, vê tu bem como é
feita essa história.
E o meu pai vai ficar rico?
Não, meu menino, quem vive do seu trabalho
nunca chega a rico. Os pretos muito menos. Dizem-nos, quando embarcamos para
África, que não são gente e piores do que bichos do mato, mas isso é fala de
quem nunca lá esteve ou de quem se quer aproveitar da fraqueza alheia.
Confio
piamente no meu avô mas gostaria que o pai ficasse rico. Pelo menos um niquinho
só para comprar a bicicleta do meu sonho. Uma para mim e outra para o Mingos…
mas também podia ser uma para os dois!
Porém o sonho
dura pouco. Quando retornamos a Angola comprovo que não vou ter a bici.
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