o
espelho da minha rua
A mais vetusta memória, angolana
e fotográfica, que tenho de mim é a reprodução de um retrato tirado no quintal
da nossa casa, no bairro do Sena & Ribeiro, em que seguro, risonho e feliz,
uma pomba (ou será um pombo?) pelas asas.
O quintal é pitoresco, carregado
de flores em latas de banha e azeite puro de oliva e selhas de barris de vinho
cortados a meio, como vasos e floreiras, uma marca indelével dos pátios onde
vivi.
Estamos em Fevereiro de 1954,
certamente, algum tempo depois de termos chegado a Angola, Porto Alexandre, eu
e minha mãe, que o meu pai e o meu avô de mãe, o Catritas, já cá estavam, bem
se vê, porque o território tinha que ser desbravado com antecedência, claro,
pelos machos da família.
Sempre tive uma grande ligação às
pombas e pombos, quanto mais não fosse pelas canjas medicinais, como se verá mais
adiante.
O bairro do Sena não pertencia de
todo aos tais Sena & Ribeiro, uma vez que o meu pai era, até, mestre de
sacada do Chico Peixe, uma pescaria vizinha dos ditos, o que não impedia que se
vivesse em paz e harmonia.
Havia, naquela zona, várias
pescarias, todas a seguir umas às outras, onde meu pai trabalhou: a do Américo
Silva, a Mercantil do Xanduca e a do Chico Carvalho (pai). A norte, mas não no
Norte, ficava a da Dona Carolina, onde ocorreu o episódio dos Caluandas – que
será contado adiante – e muito mais a sul a do Venâncio
Delgado, o Venâncio Pobre, encravada entre dunas.
Era o mesmo caminho a entrada e a
saída do bairro, uma estrada de terra batida que nascia ainda dentro da afamada
curva do Sena, pulverulento e, imediatamente, sujo de barro,
geminado,
já que o lado direito da rua era
a cópia esquerda de uma imagem de espelho verdadeiro. O que ocorria do lado
direito da rua, espelhava-se, ao contrário, no lado esquerdo: casas, redes,
chatas encalhadas e pessoas.
Eu próprio estava no lado direito
e sentia-me, no meu carro de caixas de sabão com rolamentos, do lado esquerdo,
com o mesmo porte e sortido mas movendo-me em sentido contrário.
Intrigado, atingido o final da
rua, contornei a rotunda de guano comprimido, tentando alcançar o lado esquerdo da rua e
chegar ao sítio exacto onde me encontrava há instantes atrás. A maca6 é que, ao chegar ao
dito sítio, eu já ali não estava, mas sim na posição contrária anterior, ou
seja, sempre que me encontrava numa determinada localização da rua, o outro eu estava
sempre na posição de espelho.
A solução seria transpor o
imbróglio, questão que, ao cabo e ao resto, parecia bastante fácil. Desrespeitando
os separadores da estrada, consegui seguir para a outra banda, trespassando atabalhoadamente
o separador central, formado por três fileiras compactas de secos
carapaus-do-alto.
Erro crasso. Quando dei por mim
não existia eu, nem à direita nem à esquerda!
Olhei em frente e só avistei
filas e filas paralelas de tarimbas de seca de peixe, a perder-se no horizonte,
cobertas de moscas varejeiras. O cheiro nauseava, tuji-ni-masu!
Foi esse malcheiroso odor que me
despertou.
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